O PALCO DO QUARUP E A PONTE QUE PARTIU
Não sei bem por que cargas d’água (arcaica expressão, contudo muito propícia para as Sete Quedas), porém, assisti à minha própria banda, o Chá da Serra, no palco do acampamento ecológico de despedida (daí a referência ao Quarup) às saudosas cachoeiras, no Parque Nacional das Sete Quedas, em Guaíra, no oeste paranaense. Não me recordo de todo o repertório, mas lembro perfeitamente de como o público (proveniente de diferentes locais do nosso país e também de vizinhos sulamericanos) se empolgou e participou intensamente, cantando o clássico… O sapo não lava o pé. Não, não era nenhuma paródia, releitura ou coisa parecida. Era a própria, a legítima cantiga infantil, que foi puxada pelo carisma de uma dupla que, merecidamente, roubou a atenção do público, seja pelo inusitado de incluir tal canção em meio aos blues, rock e mpb que tocavam, seja pela maneira, ao mesmo tempo irreverente e cativante, com que a tocavam: o Paulinho Michelotto e a Deth. Ele, sentado num banquinho, com a maior naturalidade, como faz até hoje, dialogava por meio de suas mil expressões faciais, todas simpáticas e engraçadas, com a viola que retribuía com as harmoniosas melodias. Ela, a Dethinha, descalça deslizava pelo palco dançando e cantando com a desenvoltura de uma diva. O sopo no lovo o pô, no lovo porquo no cô… em todas as vogais, a cantiga foi entoada pelo público, tendo ao fundo o crepitar distante do Rio Paraná se enfurnando pelas quedas, canyon abaixo. Já os sapos… bem, esses repousavam escondidos pelos cantinhos úmidos e sossegados, provavelmente bem distante dos cerca de cinco mil campistas.
Por três dias, muita gente boa e arte da melhor qualidade desfilaram naquele palco. O pessoal do Blindagem encontrou em Guaíra o lugar certo para tocar o Cheiro do Mato. A voz retumbante do Ivo prenunciava outra hecatombe ambiental, associando o cogumelo nuclear a uma nebulosa luminosa que brilha tanto e ninguém vê. E o pior (ou seria o melhor?) é que era um mundo tão bonito, caprichado de detalhes (pois) Deus gostava de florir… Teve também a banda Enhenho, de Florianópolis, com sua inesquecível Lagoa da Conceição, ambas belíssimas, a música e a própria lagoa. Encenações teatrais e mais a apresentação do grupo de dança da saudosa Rita Pavão. Afora isso, havia celebrações religiosas campais, havia pessoas que em grupo, ou propositalmente sozinhas, se despediam das quedas, percorrendo todo o longo circuito das trilhas e pontes sobre as dezenas de saltos. Entre loucas gargalhadas e dolorosas lágrimas, revelavam, incrédulos, o sofrimento ante a estupidez de alguém (ou um conjunto de poderosos alguéns) decretar um fim à tamanha beleza natural. Um quarto e também numeroso grupo lembrava a turma de Woodstock, que, anos antes, no lado de lá do Equador, banhava-se nu nas frias águas do rio Paraná, que num ou noutro canto, caprichosamente, tratava de forjar suas prainhas.
Um pequeno parênteses para comentar sobre o circuito de visitação das Sete Quedas: meio ano antes do Quarup, houve uma tragédia com repercussão nacional. Uma das pontes pênseis sobre alguma das quedas se rompera, quando dezenas de pessoas a atravessavam. A maioria se estropiou nas pedras ou foi arrastada pelas furiosas águas, apertadas pela garganta de basalto. Alguns se salvaram penduradas no que sobrou da ponte ou nas rochas das margens íngremes e escarpadas. Houve um pescador que teve seu dia de herói, arriscando sua vida ao se lançar nas revoltosas águas para resgatar sobreviventes ilhados. Houve também um culpado… Alguém tinha de ser, ou melhor, alguém tinha de fazer o papel de culpado, para assumir a responsabilidade de outrem e para disfarçar a opinião que, naquele crepúsculo de governança militar, já andava tão crítica que nem com toda a invencionice da mídia corrupta seria possível ludibriar. Mas, vá lá. Lembro-me bem que assisti de um sofá de casa à quase imediata conclusão das “investigações” realizadas a respeito da causa do rompimento da ponte (e da consequente morte de mais de trinta turistas). Antes de divulgar a quem coube a responsabilidade pela tragédia, convém lembrar que o Parque Nacional das Sete Quedas era administrado pelo IBDF – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – (o órgão que precedeu o IBAMA). Logo, toda a infraestrutura do parque e sua manutenção eram de sua responsabilidade. Porém…, entre a teoria redigida nas atas e a prática exercida no dia a dia deste parque (e dos outros também), havia um abismo tão profundo quanto aqueles em que se lançavam as águas do rio Paraná, na altura de Guaíra, pouco mais de cem quilômetros ao norte – e a montante – da foz do rio Iguaçu (próximo, portanto, de outra maravilha eternamente reinventada pelas águas fluviais. Essa, contudo, graças a Deus, salvas da insensatez dos que nos representam e nos administram).
Ocorre que à noite, o Jornal Nacional, arauto oficial do regime militar que por duas décadas deteve as rédeas do poder em nosso país, noticiava que havia sido encontrado o responsável pelo desastre: era um índio que habitava nas proximidades. Até o colocaram diante das câmeras, vagamente me recordo de sua expressão um tanto atordoada, sorrisos amarelos escapando no vão dos dentes que faltavam, uma expressão evidente de quem não está entendendo nada do que está ocorrendo ao seu redor. Enfim, ele afirmara (ou teriam-no obrigado a afirmar?) que andava retirando tábuas das pontes e passarelas da trilha das Sete Quedas, para usar como lenha.
Teria o povo brasileiro engolido essa?
Um, digamos, mero detalhe (para finalizar esse primeiro capítulo): a ponte caiu porque os cabos de aço de sua armação se romperam. Quanto às tábuas que compunham o piso da ponte, bem, essas estavam todas em seus devidos lugares. De modo que não faltavam tábuas nem caras de pau nessa e em tantas outras histórias daqueles tempos.
Francisco Rehme, o Chicho.
Legal, Chicho. O texto está bem interessante e lembra de uma época combativa e desafiadora.
Participei desse momento através da Comissão de Justiça e Paz e seu texto tra z a lembrança de boas batalhas.
Opa Beto. Foi o tempo do Quarup Sete Quedas, da luta pelas terras caingangues e guaranis de Mangueirinha – e que resultaram na tocaia ao cacique Cretã -, movimentos que de uma forma e de outra devem ter contribuído para o fim do regime militar, para o movimento das Diretas Já…
Valeu!
Daê, mano branco!!!
Contribuindo com esse seu maravilhoso e inspirado (como sempre – ainda penso em vender minha craviola e outras coisa pra você publicar seu livro… rs) relato, algumas informações complementares:
Subimos ao mágico palco do Quarup na tarde do sábado 24 de julho. O Paulo resolveu tocar “O Sapo” porque nós demoramos pra nos ajeitar no palco. Ganhou o público (enorme, por sinal – talvez o maior de toda a história do Chá da Serra…) ali… Em seguida acompanhamos o Paulo em duas músicas dele: “O Sol” e “Horizonte Sem Fim”, e encerramos executando “Cuidado, Aí Vem Ela”. O Chá da Serra tocou desfalcado do saudoso Paulinho, que não viajou pra lá não sei por quê…, e de você, que não tocou conosco pois não havia levado suas percussões… Mas tivemos a contribuição fantástica do Paulo Michelotto e da Déth, como vc relatou…
Sobre o evento em si, apenas agrego que a minha despedida pessoal das 7 Quedas – que guardo em minha memória até hoje, foi, nesse mesmo sábado, ter andado horas a fio pelas trilhas solitariamente, sentando à beira dos penhascos, cruzando as pinguelas, enquanto ouvia num “Wlak Man” do Bittenca (lembra?) o primeiro disco solo do David Gilmour (Pink Floyd). Marcou tanto que até hoje quando ouço esse disco lembro dessa triste despedida. Pena que as narrativas oficiais não permitam punir ou, ao menos, trazer à tona a imbecilidade que significou o sepultamento dessa maravilha… Itaipú? Não, obrigado. Jamais porei meus pés lá…
Abração, Chicho!!!
Apenas algo mais que lembrei: pra gente tocar lá, eu e outros malucos tivemos que sair por Guaíra tentando achar alguém que emprestasse um piano! Quando conseguimos, viemos trazendo o piano para o parque sobre a carroceria de uma Kombi, tocando e fazendo muita algazarra… Acho que os pacatos moradores da cidade devem ter achado muito esquisitos esses doidos que vieram de todos os lugares para aquele Woodstock tupiniquim… rsrs
E teve também a dificuldade em conseguir emprestar uma guitarra e um contrabaixo… Mas, no fim, valeu.
ERRATA do 1º post: “WALK man”, é claro…
Até.
Ô Mauro: Foi imensamente formativo para mim, para você para milhares de outros jovens que fizeram o Quarup das Sete Quedas, em julho de 1982. Agradeço a rica complementação da apresentação da banda Chá da Serra em 24 de julho e que Deus conserve a vivacidade de sua memória, rapaz!
Abraço,
Chicho.
Nota-se que essa turma tem muitas histórias interessantísimas para contar. Quisera eu ter umas três vidas paralelas, para em uma delas ter participado destes ricos momentos. Enquanto isso é impossível, segundo as leis da física “deste” universo, penso que um livro do Chicho já serviria para vivenciarmos um pouco disso.
SETE QUEDAS PARA SEMPRE – SEVEN FALLS FOREVER – Veja imagens inéditas do Parque Nacional das Sete Quedas no YouTube. Fazem 30 anos que a tecnocracia autoritária destruiu um dos recantos naturais + belos e poderosos do planeta – que poderiam gerar bilhões com turismo – pois foi criado para o deleite da humanidade!
VEJA EM: http://youtu.be/u924jbDBz3c
Olá estimadissimos Chicho e Mauro,
Tanta coisa me veio a cabeça quando acessei o site do Midiaeducação por intermedio da FLIM 2012 que está sendo constantemente atualizada pelo facebook, criando assim essa ponte com o texto sobre Sete Quedas.
A opção pela geografia me fez agora um vivente amazônico há aproximadamente 4 anos. Depois de 3 anos no Acre, eis que agora estou vivendo em Altamira, sul do Pará, trabalhando numa ONG de conservação e desenvolvimento sustentável na amazônia
Além dos desmandos, bárbaries, ilegalidades, ingerencias e falta de governança nesta fronteira do sertão brasileiro temos vivido aqui na cidade o processo de barramento e construção da hidreletrica de Belo Monte.
Parece-me que o enredo é similar ao das Sete Quedas: planos e projetos energeticos que perduram desde o governo militar sendo, ainda, interpelados como modelo de desenvolvimento nacional. A lógica, meus caros, perdura por 40 anos! O projeto de barramento do rio Xingu é de 1972! Vemos que a quimera social às populações indigenas e tradicionais nunca é relevada e o espaço vivido do rio Xingu irá se transformar num colosso de concreto que trará uma hecatombe ecológica e social para as populações diretamente afetadas e que são sempre – enfatizo bem: sempre! – omitidas de oitivas e consentimentos livre, prévio e informado
O rio Xingu é o rio mais lindo que vi em toda minha vida! De encantos ainda pouco revelados ao Brasil, aqui encontra um corredor de sociobiodiversidade de inigualavel singularidade e beleza.
Parece-me Chicho que agora poderiamos reinventar o Quarup; não lembrarmos e celebrarmos somente os velhos mortos de grande estima, mas também o Quarup dos rios barrados e fadados a morte pelos grandes projetos de infra-estrutura do Brasil.
Um grande abraço aos meus mestres que me fizeram ser geógrafo.
Muita força e luz pra todos!!!
Um Quarup para os rios que se foram fluir na eternidade! Bem pensado, André. Os que foram significativamente modificados pelas barragens; os que cruzam inocentes as grandes e médias cidades e, por isso, se emporcalham; os que se empanturram de agrotóxicos nas zonas rurais; os que foram parcialmente ressequidos pelos processos de desflorestamentos…
A lista de rios aos quais se dedicariam esse Quarup seria imensa!
Grande abraço, obrigado pela partilha de ideias, Abndré.
Chicho.
Navegando nas águas calmas (?) da web localizo o post dos eternos confrades Mauro e Chicho abordando a experiência do acampamento político-ecológico Kuarup na despedida de 7 Quedas. A discussão permanece, com o choque entre o desenvolvimento econômico representado pelas usinas frente ao dano a sítios naturais, por vezes extremamente belos, como foi o caso. Na época, no auge dos meus imberbes 15 anos, constatáveis no primeiro plano na foto na bateria, defendia uma postura um pouco diferente de meus amigos: achava sim que as Quedas devessem ser preservadas visto a magnifica impressão que causavam, que so um cego nao perceberia. Mas pensava que a alternativa seria a de procurar um projeto de engenharia em que o lago de Itaipu nao chegasse a Guaíra. Claro que nao havia essa alternativa, pois o lago da represa é enorme, atingindo uma área maior que a muitos de seus municípios lindeiros. OK, houve que se tomar uma decisão, e durante o governo militar nao se abria opinião ao público, de sorte que optou-se pela geração de energia pela maior hidrelétrica do mundo, que mesmo assim so atende a necessidade de 18% da necessidade total do Pais. A solução ao dano ao meio-ambiente é conhecida: tomar-se medidas compensatorias como reflorestamento, energias limpas, reciclagem, etc. Mas que a beleza incomensurável de 7 Quedas, que soh quem viu in loco conheceu, faz falta, ah como faz…