No final de 2013, ganhei um prêmio literário nacional com um romance inédito. Do anúncio do prêmio até a publicação se passaram alguns meses. Festejei, divulguei por diversos meios, e as pessoas, sempre generosas, endossavam a conquista, parabenizavam-me. Enquanto isso, eu tratava da publicação junto à editora.
Esse recorte de tempo que vai do anúncio até o lançamento é sem dúvida o período mais festivo e livre de responsabilidades. É o que diverte, é o que empolga, é o que faz sonhar, faz você colocar a vida em balanço e dizer a si mesmo, confiante: “que legal, hein, lembra da página em branco, dos zero caracteres na tela? Do frio na barriga para colocar a primeira frase?” Pois bem, passado tudo isso, aí está: um prêmio, uma editora, uma capa bonita, amigos e interessados em literatura indo ao lançamento para o ritual dos autógrafos.
Vai parecer jogo de cena, charminho bobo, mas não é: o encanto acabou a partir do momento que a primeira pessoa disse a frase mais singela que pode existir: “quero ler seu livro”. Foi como levar um susto com alguém que dissesse “a roda gira” ou “o Atlético Paranaense é o melhor time do universo”. Coisas muito evidentes para causarem espanto. Então, é claro, se eu escrevi um livro, é para as pessoas lerem. Mas o frio dos medos empedrou o estômago. “Cara”, eu dizia para mim mesmo, “agora as pessoas lerão o livro!” “A editora tem uma lista de endereços para mandar para jornalistas e escritores!” “Talvez até a minha tia que passa as tardes fazendo pão e cerveja caseira leia isso!” Que vergonha. E é verdade. Talvez um dia, mais e mais experiente, eu dê de ombros, mas, por formação, a ansiedade e insegurança que me acompanham desde que me conheço por gente me impedem de não sentir uma espécie de vergonha. Vem um sentimento de inferioridade, vontade de mudar de ideia e explicar, para um interlocutor que nem disse nada, que aquilo que está dito lá não é bem assim, veja bem, claro que eu poderia ter escrito melhor, é, a frase ficou longa, né, é, essas palavras repetidas e tão próximas…
Uma vez, no meu primeiro ano de escola, a professora nos deu um papel com dois desenhos: um coelho dentro de uma casinha e um coelho fora de uma casinha. Como estávamos nos alfabetizando, foi a própria professora quem comandou: “pintem o coelho que está DENTRO da casinha”. Na minha ingênua arrogância infantil, pensei: “nossa, se a escola for isso, então minha vida por aqui será fácil”. Mal acabei de pensar e uma menina um ou dois anos mais velha (escola pública, idades misturadas) me bateu no ombro e disse: “não! O coelho que está dentro da casinha é este aqui”. E apontou para o coelho que… estava FORA da casinha. O monstro da insegurança atacou-me a jugular. Mudei a direção do lápis e pintei o coelho sem casa que, se eu reparasse bem, talvez estivesse me olhando com cara de espanto.
Cresci com essa necessidade de pedir desculpas ao mundo, essa disposição para me intimidar com a presença das pessoas e seu olhar de juiz do juízo final, mesmo que estejam apenas me olhando. Desde pequeno tenho como amigo imaginário um advogado do diabo, que fica dizendo o contrário daquilo que eu acho que penso. E o amigo imaginário, ao menos nessa minha cabeça atormentada, pega carona nas pessoas. Antes que me joguem a camisa de força, no entanto, aviso que consigo viver disfarçando muito bem. Eu… acho.
Junto com tudo isso, encontrei na palavra escrita um jeito de colocar mais ordem aos pensamentos. O ritmo mais lento que o da fala – e apesar dos mais de dez anos como professor, eu ainda sofro para falar em público – faz com que, na escrita, eu fuja das perguntas à queima-roupa (nada me deixa mais atônito do que perguntas à queima-roupa) e possa desenvolver melhor os enigmas que me assolam. Desenvolver está longe de resolver, é bom que se diga. No entanto, mais cedo ou mais tarde, a palavra escrita – por meio da qual me sinto mais confortável para elaborar meus desconfortos – vai parar nas mãos e nos olhos do leitor. E o ciclo da insegurança recomeça.
E não tem jeito possível: se eu receber uma crítica, sou o pior dos seres viventes, eu já sabia que não devia ter me metido nisso; se eu receber um elogio, o medo de desapontar da próxima vez vem em cargas dobradas, ou a pessoa disse isso porque é gente boa, quer agradar.
Não, não tem solução. Só tem literatura.
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Cezar Tridapalli |
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É coordenador de Midiaeducação no Colégio Medianeira. Formado em Letras (UFPR), especialista em Leitura de Múltiplas Linguagens (PUCPR) e mestre em Estudos Literários (UFPR), é também escritor, autor dos romances Pequena Biografia de Desejos (7Letras) e O beijo de Schiller (Arte&Letra), vencedor do Prêmio Minas Gerais de Literatura 2013. cezartridapalli.com.br. Leia outros artigos dele aqui. |
Você esqueceu-se de comentar sobre uma das tuas mais fortes características. E dê-lhe frio na barriga porque não você não sabe se o que se segue é bom ou ruim, mas, provavelmente seja ruim, segundo o seu amigo imaginário.
Entretanto quero falar sobre a tua coragem que, pelo que percebi, precisa ser lembrada principalmente por você. Coragem de dizer (ou escrever) o que pensa ser o certo, coragem de assumir suas fragilidades publicamente, coragem de se expor.
Todos temos nossas fragilidades, nossos medos, nosso advogados do diabo. O que acontece com a maioria de nós e que nos encolhemos diante deles e nos camuflamos para sermos confundidos na multidão e para que os olhares e opiniões não nos atinjam tão diretamente.
Não pense você que seja fácil escrever no teu post. Também estou me arriscando (e muito) e pensando em tudo o que você escreveu, que outras pessoas também lerão o que te escrevi, que você pode não gostar de ler isso, etc., etc., etc. Mas foi essa tua postura de exposição que me encorajou a dizer essas coisas.
Gostaria, por fim, de parabeniza-lo pelo trabalho e pela coragem. Que ela sirva de alento e motivação aos nossos jovens para que não abandonem seus sonhos, apesar dos amigos imaginários, os “nãos” dos coelhos, dos olhares, das dificuldades.
Parabéns e sucesso!!!
ET. : Hesitei na hora de clicar em enviar… mas, dessa vez não vou concordar com meu amigo imaginário e vou escrever no teu post.
Prezado Dorival! O aperto na boca do estômago sempre começa quando eu vejo que alguém respondeu, mas, no teu caso, ele foi se afrouxando à medida que eu ia lendo. Acho que o post foi capaz de causar empatia nas pessoas, pois todas têm destacado essa fragilidade inerente às nossas ações. Talvez seja um filtro necessário para não sairmos por aí achando que estamos sempre arrasando, hehe. De qualquer forma, vocês são mesmo muito gente boa. Obrigado! Grande abraço.
Olha… Você foi o meu professor de Literatura no terceirão desta referida instituição a qual, hoje, nós dois trabalhamos, somos colegas. 15 anos depois… Já não existe mais a relação professor-aluno e, desculpe, eu confesso que matava muito as suas aulas. Naquela época o bosque da escola sempre me pareceu muito mais atrativo que as longas tardes de estudo. Hoje, na verdade quase sempre, me passa um filme mental quando passo por estes corredores, salas de aula, bosque, curvas… Não sei qual caminho eu desviei, mas hoje habito a sala dos professores e, por vezes, insegura, também tenho os meus ” mimimis…”. Deve ser legal publicar um livro. Parabéns e muita merda!
Bem, Ana, cá estamos, tendo ou não matado algumas aulas. Minhas úncias “manchas” na vida escolar dizem respeito a esse mesmo fato. Sobrevivemos, mas não sem alguns arranhões. Obrigado!
“TOCA PRÁ QUEM GOSTA!”, me apropriando das palavras do sábio Prof. Marcão (o Meyer).
É perda de vida querer que o seu rock agrade a um fã de sertaneja, nem que você faça o seu melhor. Por outro lado, não é razoável mudar o seu estilo visando a agradar a todos, pois assim você ficará infeliz com o seu trabalho.
Assim, escreva pensando em quem gosta de você e siga com leveza.
Alberto, tudo a ver. Aliás, quem consegue agradar todo mundo talvez não tenha um posicionamento muito sólido, né? Apesar da solidez necessária, vou me lembrar da leveza, leveza, leveza, tão importante pra paz de espírito. Obrigado! Abraço.
Rose, que bom saber que leu e gostou do primeiro livro! E não precisa se apresentar. Você e a Susan são daquelas pessoas que, mesmo distantes, a gente não esquece.
Bem, sobre a maturidade, a gente tenta amadurecer sem apodrecer, eis o desafio, hehe.
Obrigado! Grande abraço.
Cezar você é muito modesto, escreve muito bem. Todos somos um pouco inseguros. Li seu primeiro livro e me surpreendi com sua maturidade , apesar de ser tão jovem. Vou ler com certeza o segundo. Foi minha filha Susan, que me apresentou o primeiro livro, ela foi sua aluna no Medianeira. Que muitos outros livros possam nos presentear, parabéns.
É incrível como podemos voltar à idade pré-escolar quando ficamos nus diante do olhar dos outros.
A gente sempre acha que vão reparar naquele nosso defeito, tão imenso para nós e praticamente imperceptível para eles todos…
Você não está sozinho nessas sensações, nessa coisa de achar que deve desculpas sempre… por isso tem tanto terapeuta por aí ganhando uma grana: eles descobriram que eu, você e a torcida do Flamengo cresceram assim! rs rs rs…
Agora, falando sério: parece que chegou a verdadeira hora da sua iniciação. Vencer essas provas é crescer ainda mais. Pode doer e/ou ser difícil, mas VALE A PENA!
Acredite: vai ter gente que vai gostar DE VERDADE do livro, e vai ter gente que não vai gostar. Uns vão dizer, outros não, como acontece com todos os escritores do mundo, né?
Abraço!
Grace, obrigado pelo choque de sobriedade. Esse congraçamento entre inseguros do mundo todo tem um quê de reconfortante. Se nem o Philip Roth é unanimidade (e o Nelson Rodrigues já falava algo interessante sobre a unanimidade), quem somos nós, os mortais? Apesar de tudo, tudo está, sim, valendo as penas. E elas são muitas.
Obrigado! Abração.
A obra, nascida, aspira com esforço o oxigênio e berra ao mundo que está viva. Como tem pedigree, certamente, seguirá crescendo.
Cezar: parabéns por mais esse grande livro que você nos presenteia.